Precarização do trabalho e economia digital no mundo e no Brasil: anular reformas regressivas para retomar o desenvolvimento*

As profundas transformações do capitalismo vêm agravando a situação do mercado de trabalho no mundo e no Brasil. A literatura mostra que a contrarrevolução monetarista e a contestação das políticas monetária e fiscal na década de 1970, abriram o caminho para as medidas de liberalização da conta de capital, flexibilização do trabalho e desregulamentação financeira.

Tal “consenso macroeconômico ortodoxo” (Resende, 2020) norteou as ações dos governos de inclinação liberal-conservadora, como Margaret Thatcher (Inglaterra) e Ronald Reagan (EUA), impulsionando o regime de acumulação financeira em curso.

No Reino Unido e nos EUA, por exemplo, com o desmantelamento dos mercados de trabalho e da proteção ao emprego da Era Fordista (Wagner Act of 1935, Employment Security Act of 1946, Social Security Act of 1935) foram adotadas estratégias de trabalho contingente, como diárias, contrato zero hora, terceirização, redução de salários, ataque a ação coletiva dos trabalhadores e aumento de acidentes de trabalho que afetaram imigrantes, negros, minorias éticas e estudantes em tempo integral (Farina et al., 2019; Peck y Theodore, 2012).

Apesar da tendência global de precarização do mundo do trabalho, de aumento da desigualdade e de vigência das “forças destrutivas da revolução neoliberal” (Reinert, 2016, p. 399), os países ricos, ao longo do desenvolvimento histórico de suas instituições, não adotaram, na prática, a agenda liberalizante que tradicionalmente prescreveram aos países em desenvolvimento.

Parafraseando o economista Erik Reinert, enquanto os países ricos se especializaram na geração de riqueza, produzindo bens de alto valor agregado; o Brasil, por falta de uma estratégia nacional coordenada de desenvolvimento de longo prazo, vem se especializando em ser pobre (Reinert, 2016). É urgente a retomada da indústria, a promoção da sofisticação tecnológica (Gala y Roncaglia, 2022) e a reconfiguração da matriz produtiva para aumentar a competitividade do país nas cadeias globais de valor, com sustentabilidade socioambiental.

Mais de 80% dos empregos gerados no Brasil têm remuneração de até 2 salários mínimos (Rodrigues y Ferrari, 2021), em setores como salões de beleza, padarias, shoppings centers, restaurantes, pequenos empreendimentos, farmácias. Dados recentes da PNAD Contínua do IBGE, mostram que, embora a taxa de desemprego tenha caído levemente para 11,2% (em janeiro de 2022), a renda caiu quase 10% em um ano.

O trabalho por conta própria entre diplomados (com e sem CNPJ) e o emprego sem carteira assinada são recordes no Brasil (Gavras y Vieceli, 2022). Considerando a realidade de 12 milhões de desempregados, no quarto trimestre do ano passado, 30,3% do total de desocupados, o que corresponde a 1/3 dos desempregados (3,6 milhões de pessoas), estavam procurando vagas por 2 anos. Por outro lado, no quarto trimestre de 2012, os desempregados de longo prazo (1,3 milhão) representavam 18,6% do contingente total em busca de trabalho no Brasil (6,7 milhões) (Vieceli, 2022).

A reforma trabalhista de 2017 não gerou os milhões de empregos prometidos pelo ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles. Ela instituiu o negociado sobre o legislado, o trabalho intermitente, a redução da fiscalização, dentre outros aspectos deletérios. O resultado foi a precarização, o enfraquecimento da regulação laboral e a profunda deterioração da renda.

O governo Bolsonaro tenta aprofundar a todo custo a reforma de Michel Temer, com medidas como o contrato verde e amarelo para os jovens, a liberação do trabalho aos domingos e o não reconhecimento de vínculo empregatício entre os entregadores e as plataformas digitais. Estas, por seu turno, são protagonizados pelas grandes corporações globais da tecnologia (Big Techs) que se apropriaram dos dados de bilhões de pessoas sem se submeterem ao crivo democrático e sem prestar contas à sociedade.

Nos termos de Rafael Grohmann, a plataformização resulta de um processo histórico aglutinador de fatores diversos, como a ideologia do Vale do Silício, o capitalismo financeiro/rentista, a gestão neoliberal, a extração permanente de dados pessoais e a responsabilização individual dos trabalhadores (Grohmann, 2021, p. 13).

Diante dos graves impactos da pandemia global e da digitalização acelerada da economia, as democracias ricas, como é o caso dos EUA (ver Plano Biden) estão retomando o planejamento estatal para impulsionar o investimento público, fortalecer os sistemas de proteção social e os trabalhadores. Por outro lado, o governo Bolsonaro tenta de toda forma aprofundar o desmonte da regulação do trabalho. Somam-se a estes fatores a elevação do custo de vida: alimentos, transportes, aluguel, aumentando a fome e a extrema pobreza, como ocorreu no fim da ditadura militar (1964-1985).

Será imprescindível uma nova e ampla coalizão política para derrotar nas urnas a ameaça autoritária bolsonarista. O momento é urgente, demanda das forças democráticas a superação de divergências ideológicas e a promoção de uma sólida e robusta união em prol da sobrevivência da democracia brasileira, que está em fase acelerada de deterioração.
Por fim, revogar as reformas de austeridade, reconstruir a estrutura institucional do Estado brasileiro e implementar uma política macroeconômica keynesiana que retome o investimento público em infraestrutura, fomente a demanda, gere empregos protegidos, amplie o mercado interno e enfrente o flagelo da fome.


Carlos Eduardo Santos Pinho

Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (PPGCS-UNISINOS). Realizou estágio de pós-doutorado no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT/PPED) e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (PPGSP-UENF). Doutor e Mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Sócio do Centro Internacional CELSO FURTADO de Políticas para o Desenvolvimento e pesquisador do INCT/PPED. Integra a Red de Hómologos sobre Desigualdad y Pobreza (AUSJAL), o Grupo de Estudos Interinstitucional sobre Futuros da Proteção Social (Centro de Estudos Estratégicos/FIOCRUZ) e o Grupo de Trabalho - GT “Trabajadorxs y reproducción de la vida” do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). E-mail: cpinho19@unisinos.br

* Este artigo é uma versão reduzida, reformulada e atualizada de texto a ser publicado como policy brief da Red de Hómologos sobre Desigualdad y Pobreza (AUSJAL), em 2022.


Referências bibliográficas:

Farina, E., Green, C., y McVicar, D. (2019). Zero Hours Contracts and Their Growth. IZA, 12. https://www.iza.org/publications/dp/12291/zero-hours-contracts-and-their-growth

Gala, P., y Roncaglia, A. (2022). O desafio da política industrial em tempos de pandemia. En G. Maringoni (Ed.), A volta do Estado planejador: Neoliberalismo em xeque. Editora Contracorrente.

Gavras, D., y Vieceli, L. (2022). Diplomados que trabalham por conta própria são recorde. Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/02/diplomados-que-trabalham-por-conta-propria-sao-recorde.shtml

Grohmann, R. (2021). Introdução: Trabalho em plataformas é laboratório da luta de classes. En R. Grohmann (Ed.), Os laboratórios do trabalho digital: Entrevistas. Boitempo.
Peck, J., y Theodore, N. (2012). Politicizing Contingent Work: Countering Neoliberal Labor Market Regulation... from the Bottom Up? South Atlantic Quarterly, 111(4), 741-761. https://doi.org/10.1215/00382876-1724165

Reinert, E. S. (2016). Como os paises ricos ficaram ricos... E por que os paises pobres continuam pobres. Contraponto.

Resende, A. (2020). Consenso e contrassenso: Por uma economia não dogmática. Portfolio-Penguin.

Rodrigues, D., y Ferrari, H. (2021). 83% dos empregos formais criados em 2021 pagam até 2 salários mínimos. Poder360. https://www.poder360.com.br/economia/90-dos-empregos-formais-criados-neste-ano-pagam-de-1-a-2-salarios-minimos/

Vieceli, L. (2022). Quase 1/3 dos desempregados procura vaga há pelo menos 2 anos. Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/03/quase-13-dos-desempregados-procura-vaga-ha-pelo-menos-2-anos.shtml



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